terça-feira, 8 de julho de 2014

Nicolau e Trindade, os mestres na arte de pedalar que deram vida à rivalidade entre Benfica e Sporting

José Maria Nicolau (Benfica)
e Alfredo Trindade (Sporting)
Nasceu dentro de um campo de futebol mas foi graças ao ciclismo que atingiu a gigantesca dimensão patenteada nos dias de hoje. Esta é uma visão sustentada por muitos historiadores desportivos lusitanos, para quem a eterna, intensa, e apaixonante rivalidade entre Benfica e Sporting viu a luz do dia graças às corridas de bicicletas travadas nos princípios da década de 30 do século passado, muito por culpa de duas das maiores figuras do ciclismo nacional, Alfredo Trindade e José Maria Nicolau. Ambos naturais do Cartaxo eles edificaram nas estradas - quase medievais - do Portugal de então duelos intensos e apaixonantes, duelos que chegariam ao patamar do misticismo do desporto nacional, duelos que levaram os nomes de Benfica e Sporting aos cantos mais escondidos do país. Eles foram os heróis de uma época em que as grandes festas desportivas - ou os grandes eventos - eram quase um exclusivo das grandes cidades - Lisboa, Porto, ou Coimbra - deixando as pequenas povoações - sobretudo as do interior - órfãs da emoção e entusiasmo que o fenómeno desportivo emana. E aqui há pois que fazer uma vénia ao ciclismo, a modalidade responsável por levar a festa do desporto, as emoções do desporto, aos recantos mais longínquos daquele Portugal de início de século. A chegada de uma corrida velocipédica a uma qualquer aldeia ou vila do interior dava quase aso a honras de feriado municipal! O ciclismo galvanizava o povo, que apinhava as bermas das estradas por onde a caravana serpenteasse, na ânsia de ver os heróis do pedal. Nicolau e Trindade foram durante anos as personagens principais desta onda de entusiasmo, foram eles os responsáveis pelo crescimento - em termos de adeptos - de Benfica e Sporting um pouco por todo o território nacional, e na opinião de muitos a popularização - como hoje a conhecemos - do dérbi eterno a eles se deve.

O baixinho e franzino Trindade
e o gigante e robusto Nicolau
Mais do que rivais, mais do que astros na arte de pedalar, eles eram sobretudo amigos, grandes amigos. Nasceram, como vimos, no mesmo concelho, o Cartaxo, no ano de 1908, separados apenas por nove meses de diferença. Apesar de mais velho que o seu conterrâneo, Trindade (que nasceu no dia 3 de janeiro) abraçou o ciclismo depois de Nicolau (que veio ao Mundo a 15 de outubro). José Maria Nicolau iniciou a sua aventura velocipédia em 1928 - curiosamente um ano depois da ocorrência da primeira edição da Volta a Portugal - no Carcavelinhos, ao passo que Trindade começou a correr em 1931 na pequena coletividade lisboeta do União do Rio de Janeiro (com sede no Bairro Alto). Apesar de terem semelhanças ao nível de berço, de Bilhete de Identidade, e de terem sido ambos talentos natos na arte de pedalar, Trindade e Nicolau eram a antítese um do outro em termos de estrutura física. O primeiro era baixinho, franzino, ao passo que o segundo era alto, robusto, uma força da natureza. Nada que os impedisse, cada um à sua maneira, de escrever algumas das páginas mais deslumbrantes da história do ciclismo nacional, sobretudo na prova rainha do calendário velocipédico português, a Volta a Portugal.

Uma das muitas batalhas épicas travadas
entre os dois ciclistas com
as camisolas dos emblemas da capital
O primeiro duelo mítico entre os dois lendários corredores aconteceu na segunda edição da Volta, em 1931. Na altura, Nicolau vestia já a camisola do Benfica, clube para o qual havia entrado dois anos antes, ao passo que Trindade - como já vimos - fazia a sua estreia na alta roda do ciclismo nacional com as cores do União do Rio de Janeiro. Eles seriam os protagonistas de um pelotão composto por 29 corredores que no dia 6 de setembro desse ano partiu desde a Cova da Piedade até Setúbal numa tirada de 40km, a qual seria ganha pelo ciclista do Benfica. Ao longo da prova a robustez física e coragem infindável de Nicolau travou acesos e épicos duelos com a frágil mas batalhadora figura de Trindade, discutindo taco a taco a vitória na Volta até à última etapa, que ligou as Caldas da Rainha ao Estoril. Ali, a nação benfiquista entrou em delírio, graças à vitória final de Nicolau (vencedor de sete etapas nesta edição), que assim vencia a primeira Volta a Portugal da sua nobre carreira, com uma vantagem de 29 segundos sobre o amigo e rival Trindade - que seria segundo posicionado - na classificação geral.

Rivais, mas amigos, tanto na estrada
como na vida
Um ano depois deu-se a desforra, Trindade venceu a Volta. Ainda com as cores do clube do Bairro Alto o pequeno, mas endiabrado, ciclista levou a melhor sobre o seu eterno rival por apenas três segundos de diferença. 56 ciclistas voltaram a partir da Cova da Piedade rumo a Setúbal numa primeira etapa onde logo se viu que a discussão pela vitória final iria ser entre Trindade e Nicolau. Ao longo das 19 etapas o duelo entre ambos animou uma corrida que pela primeira vez ultrapassou as fronteiras do território nacional, ao efetuar uma passagem por Vigo, onde Alfredo Trindade conquistava uma das suas quatro vitórias de etapa alcançadas ao longo da Volta de 32. José Maria Nicolau ainda vestiu da amarelo até à sétima etapa, vindo a perder - até final - a camisola mais desejada da corrida para Trindade na tirada número oito, que ligou Elvas a Castelo Branco. Rezam as crónicas que o triunfo final de Trindade se ficou a dever ao azar extremo de Nicolau. Uma queda do ciclista do Benfica na etapa número nove, que ligou Castelo Branco a Viseu, fê-lo perder terreno para o corredor do União do Rio de Janeiro, que concluiu essa tirada com 17 minutos de vantagem sobre o seu conterrâneo. Porém, a garra e determinação de Nicolau viriam ao de cima nas etapas seguintes, tendo o corredor recuperado algum tempo no decorrer da prova, fruto de algumas vitórias em etapas (conquistou 11 triunfos nas 19 etapas da Volta de 32). Porém, e como diz o velho ditado, um azar nunca vem só, e na etapa final (que ligou o Bombarral a Lisboa), com a Volta ao rubro no que toca à incógnita quanto ao seu vencedor, uma nova queda de José Maria Nicolau desfez as dúvidas quanto ao campeão, e mesmo ganhando essa derradeira etapa o corredor do Benfica não conseguiu anular os três segundos de desvantagem em relação a Alfredo Trindade, que assim vencia a primeira Volta a Portugal da sua carreira.

Nicolau e Trindade posam
para a fotografia junto de uma
das grandes divas do cinema
lusitano: Beatriz Costa
Já com a camisola do Sporting como manto sagrado Alfredo Trindade tornou-se - no ano seguinte - no primeiro ciclista a bisar naquela que era já a prova rainha do ciclismo português. A Volta de 1933 foi talvez aquela em que a luta acérrima entre os dois ciclistas menos se fez notar, já que logo na segunda etapa - que ligou Lisboa a Santarém - Nicolau adoeceu e foi forçado a desistir, estendendo desta forma a passadeira ao pequeno corredor do Sporting (vencedor de oito etapas nesta edição), o qual iria terminar a prova no primeiro posto com uma vantagem abismal de 44 minutos (!) sobre o segundo colocado, o seu companheiro de equipa Ezequiel Lino.
Na Volta do ano seguinte os papéis inverteram-se, ou seja, o azar bateu à porta de Trindade, forçado a abandonar a corrida na terceira etapa (Faro-Évora) após uma aparatosa queda que o iria levar ao hospital. Sem adversários capazes de travar a sua genialidade, Nicolau ficou à vontade para conquistar a sua segunda Volta a Portugal, terminando a última etapa com uma vantagem de 18 minutos na classificação geral sobre o sportinguista Ezequiel Lino.
Este seria o derradeiro capítulo da mítica dupla no seio da Volta a Portugal, embora na edição de 1935 tivessem ambos integrado o pelotão na partida da Cova da Piedade, acabando os dois por desistir no decorrer da prova. Contudo, a empolgante fábula de Trindade e Nicolau não se resumiu à prova rainha do ciclismo luso, muito pelo contrário. Clássicas como Porto-Lisboa, Porto-Vigo, ou Lisboa-Coimbra, testemunharam emocionantes capítulos da génese do fervoroso dérbi Benfica-Sporting.
Abandonaram ambos as lides do ciclismo - enquanto praticantes - no final da década de 30, tendo ambos enverdado posteriormente pela carreira de treinadores. Facto curioso é que o leão Trindade era o treinador do Benfica quando o maior mito da história do clube - no que concerne a ciclismo - faleceu na sequência de um acidente de viação, em agosto de 1969. Oito anos mais tarde foi a vez de Trindade pedalar rumo à eternidade, onde por certo continua a travar apaixonantes duelos com o seu amigo Nicolau.

Vídeo: EXCERTO DO DOCUMENTÁRIO: 
ALFREDO TRINDADE VS JOSÉ MARIA NICOLAU